sonhos não, realidade pura
Carta #31 || viagem ao século XIX; romantismo cor-de-rosa; realismo transgressor
Entro num drama ou saio de uma comédia?
Machado de Assis, A mão e a luva
Cidade do Panamá, 8 de maio de 2025.
I
Estou no Panamá por poucos dias antes de atracar no Brasil, para passar três meses de muito trabalho e delícias. No avião, vim agarrada a Machado de Assis, afinal, por que não abrir as portas pro meu país com o que de melhor temos a oferecer? Entre a poeira e o pincenê do bruxo do Cosme Velho, fiquei viajando sobre o tão gostoso embate entre as propostas do romantismo, como ação de idealização do passado; e do realismo, como reação transgressora que escancara as hipocrisias da realidade. De malas prontas, viajei de volta ao século XIX. Vamos comigo?
II
A mão e a luva (1874), o livro que escolhi reler sobrevoando a América, é um romance exemplar que expressa com perfeição esse embate. A luta entre realismo e romantismo se dá por meio das personagens Luís Alves, o realista ambicioso e prático; e Estêvão, o romântico leitor de Goethe que vê o mundo com “os óculos cor-de-rosa das suas virginais ilusões” (caralho, Joaquim Maria!). Ambos (que surpresa) desejam a mesma mulher. Contrapondo essas duas perspectivas, Machado critica a idealização romântica da realidade e do passado, pois Estêvão se fixa a todo o tempo no flerte adolescente que teve com Guiomar, nossa grande protagonista, ignorando que no momento presente ela o recusa. No fim do romance, para comprovar a tese realista, há o triunfo de Luís Alves sobre o ingênuo Estêvão e o indolente Jorge, os outros dois pretendentes na jogada. Guiomar é ela mesma uma mulher desejante, inteligente e segura que manipula a situação de modo a escolher* o realista como companheiro — em certo momento da trama, diz para si mesma: “Sonhos não, realidade pura”. Os dois ambiciosos, cheios de vontade para conquistar o futuro, terminam juntos, e são tão perfeitos um para o outro quanto a luva para a mão. [Promessa para o futuro: ainda virá uma newsletter sobre Guiomar, personagem fascinante que a cada releitura aumenta a dimensão do seu mistério.]
*digo “escolher” porque a mão (a luva?) (de pelica?) arquitetando tudo é a de Guiomar, mas ela manipulou a situação com tal destreza e de tal forma a fazer parecer com que os outros (Luís Alves, a Condessa, Mrs. Oswald) é que tenham “escolhido” por ela. Uma clássica mulher do século XIX: falsa passiva, silenciosamente ativa.
III
Contemporâneo de Machado, outro que critica a visão de mundo romântica é o português Eça de Queirós. Em narrativas como O primo Basílio (1878) e Alves e companhia (1925, publicado postumamente), o autor volta suas alfinetadas à preguiça da burguesia que, de tanto ler autores românticos, ficou eternamente descansando em sofás e canapés, sofrendo as consequências da imobilidade social em decorrência da leitura excessiva — daí a importância de balancear o exercício intelectual com o exercício físico, como escrevi na última newsletter. Nos romances de Eça, diversas personagens aparecem lendo deitadas e sendo influenciadas negativamente por suas leituras, o que indica uma passividade física e mental — burgueses que não trabalham e ainda assim precisam a todo o tempo “descansar”, e aproveitam para ler livros que corroboram sua perspectiva individual, limitada e “cor-de-rosa” sobre a sociedade ao redor.

IV
Segundo Leyla Perrone-Moisés, considerando o contexto pós 1822, os românticos brasileiros tinham a dupla tarefa de inventar uma literatura e inventar uma pátria, sendo incumbidos pelo peso de criar uma identidade nacional para o jovem país recém independente. Assim, eles revisitam o primeiro encontro entre portugueses e indígenas no século XVI, voltando às origens da formação do Brasil como nação e inaugurando a corrente estética do “indianismo” (odeio esse termo). José de Alencar, que não escrevia sem seus óculos cor-de-rosa, elabora Iracema (1865) com vários tropos clássicos românticos (amor proibido, por exemplo), lhes dando uma frescura tropical ao situá-los no momento inicial da colonização. Há nisso uma forte idealização da violência colonial, e Alencar eufemiza as partes duras da nossa história com a aura doce do romantismo. Iracema, mulher indígena, e Martim, homem português, se apaixonam como símbolo da formação nacional (sério, cara?), e o fruto dessa paixão, Moacir (nome que significa filho do sofrimento) é o primeiro brasileiro.
V
De maneira similar, Gonçalves Dias, no poema “Leito de folhas verdes”, faz um “indianismo” que ao mesmo tempo relembra o passado mítico brasileiro pré-colonização (por apresentar personagens indígenas em sua intimidade) e referencia o tema clássico das cantigas de amigo medievais (a mulher que espera seu amante no espaço privado, o leito erótico; enquanto ele está ocupando o espaço público, o mundo). De certa forma, por mais que o discurso de ambos os românticos — Alencar e Dias — seja se alinhar com a perspectiva dos vencidos e “escovar a história a contrapelo” (um beijo, Walter Benjamin), por colocarem o indígena no papel de “heroi original”, também o confinam a uma permanente visão objetificada na história. Isso se dá pois apesar do conteúdo ser brasileiro, a forma é europeia, e não há reflexões teórico-estruturais sobre culturas, estéticas ou subjetividades indígenas. Carola Saavedra, em “Literatura e arte indígena no Brasil” (2021), critica tanto os românticos quanto os modernistas por manterem o indígena preso nesse “espaço mítico fora do tempo”, seja como objeto moldado para caber nas convenções românticas tradicionais, ou “comida” inspiracional a ser devorada na antropofagia modernista.
VI
Mas chega de romantismo — voltemos ao realismo de Machado, agora no início do século XX. Memorial de Aires (1908), seu último romance, é em formato de diário, gênero perfeito para discutir a subjetividade das pessoas passando por grandes momentos históricos. Aqui, são registrados os dias de dois anos cruciais: 1888 e 1889, uma revisitação de dois momentos então recentes da história do Brasil, a abolição da escravatura e a proclamação da República. Quem narra é o diplomata aposentado Aires, que transita entre as casas da elite carioca. Como cena exemplar da ironia de Machado, no dia 13 de maio de 1888, o narrador visita os amigos Aguiar, e chega num momento de grande festa e alegria. Pensando que se tratava da comemoração pela Lei Áurea, assinada naquele dia, ele felicita os donos da casa, que respondem: “você já está sabendo?” “Claro”, ele diz, e pensa que todos sabem, pois é um grande momento para o país. Com o tempo, porém, Aires percebe que a alegria da casa não era devido à justa e demorada alforria dos escravizados, e sim às notícias do filho postiço do casal, Tristão, que viria de Lisboa para o Rio de Janeiro.
VII
Com o sarcasmo que define seu texto, Machado usa a pena de Aires para fazer uma poderosa reflexão sobre a hipocrisia burguesa, concluindo que, entre o coletivo e o privado, o ser humano sempre preferirá as felicidades individuais:
Não há alegria pública que valha uma boa alegria particular. [...] Eis aí como, no meio do prazer geral, pode aparecer um particular, e dominá-lo. Não me enfadei com isso; ao contrário, achei-lhes razão, e gostei de os ver sinceros. Por fim, estimei que a carta do filho postiço viesse após anos de silêncio pagar-lhes a tristeza que cá deixou. Era devida a carta; como a liberdade dos escravos, ainda que tardia, chegava bem. Novamente os felicitei, com ar de quem sabia tudo.
Com uma única cena, entre o drama e a comédia, Machado resume com maestria a profissão de fé do realismo: expor, cruamente, as hipocrisias das classes dominantes, por meio de uma linguagem irônica e afiada no seu rigoroso poder de observação. Joguemos fora os óculos cor-de-rosa, vistamos os pincenês — neste novo século, a ingenuidade romântica não cabe mais.
carta na garrafa
respostas de leitores às últimas cartas
I loved this one!! [Amei essa!!]
— Fiona Bell, editora da ótima revista Full Stop, que recomendo demais [em inglês aqui], 21.04.2025
Muito bom! Lembrei daquele ensaio famoso do Borges sobre os sonhos e os pesadelos em que ele resgata a etimologia de couchemar e nightmare conectando as palavras ao mito da égua da noite, que vem cavalgando no nosso peito nos trazendo sustos...
— Ronaldo Bressane, editor da fodona Revista Morel, que adoro, 21.04.2025
Quem conhece o oceano não se contenta com a profundidade ilusória da piscina.
Vem nadar comigo!
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com amor, Bruna K
p.s.I. leia as outras cartinhas aqui.
p.s.II. compre O presidente pornô autografado aqui.
Que aula maravilhosa! Quando sai esse seu curso de Machado de Assis?